Feedback de Cablegate para o Jardim de Éden: A individuação do vírus de mutação tecnológica
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Patrício, C. 2012. «Feedback de Cablegate para o Jardim de Éden: A individuação do vírus de mutação tecnológica». Analítica dos novos média (Revista de Comunicação e Linguagens, 43-44) Lisboa: Relógio dʼÁgua. 77-85. ISSN-0870-7081
Resumo
Cada tecnologia veicula a sua negatividade e o progresso dos engenhos está intrinsecamente relacionado ao progresso do acidente na sua performance, lembra constantemente Paul Virilio. Será impossível escapar ao sentido endémico de uma vitalidade partilhada por todos os objectos técnicos, isto porque a técnica dá forma e informa o horizonte da experiência e o acidente atesta que as coisas têm o seu poder e as suas tendências. É na aliança com a tecnologia que o ser humano se individua, descobrindo concomitantemente as suas vulnerabilidades. No entanto, um certo positivismo da ciência assevera uma posição de dominância do Homem quer face à tecnologia, quer em relação à natureza. A contrariar este pressuposto, propomos uma abordagem a Gilbert Simondon e a Du mode d’existence des Objets Techniques. Examinada enquanto rede de relações, a tecnologia permite o interface homem/natureza e, desfazendo o dualismo que esta divisão implica, faz intercomunicar os seres humanos e as entidades naturais em subtis relações de feedback. Uma vez entendida a ontogénese do objecto técnico, que por transdução progride criando novas relações entre pessoas e coisas, entre pessoas e pessoas, e entre coisas e coisas, poder-se-á falar então numa simbiose entre humanos e técnica?
Palavras-Chave: Individuação, tecnicidade, cultura técnica, feedback, vírus.
Abstract
Each technology conveys its own negativity and the developments of the engine are intrinsically connected to the accident in its performance. Paul Virilio constantly ensures this. It will be therefore impossible to escape the endemic shared vitality amongst technical objects, since technics shapes and informs the experience horizon. Accidents happen reinforcing that things have their own power and tendencies and it is rather in this alliance that human beings individuate, simultaneously discovering susceptibilities. Nevertheless, a significant positivism of science asserts a certain ascendancy of humans over nature and technology. Differing from this assumption, we propose an approach to Gilbert Simondon’s Du mode d'Existence des Objets Techniques. Technology, as a system that bears relations, allows man/nature interface, and undoing the dualism this division implies, technology produces intercommunication between humans and natural entities in a subtle feedback. Once one understands the ontogenesis of the technical object, which evolves transductively creating new relationships between people and things, between people and people and between things and things, can we then speak of a symbiosis between humans and technology?
Keywords: Individuation, technicality, technical culture, feedback, virus.
No seu estudo historiográfico Guerre et Cinéma, Paul Virilio traça uma genealogia da tecnologia militar e a sua sintomática articulação à cinematografia. Com efeito, desde a emergência da fotografia militar na guerra civil americana à videovigilância do campo de batalha na atualidade, que para a logística da percepção militar o provimento de imagens tornou-se análogo ao abastecimento de munições – uma vez que à produção industrial de armamento logo sobreveio a inovação de repetir imagens (Virilio, 1989: 4). Assim, com a inscrição de spy-satellites, drones e outros equipamentos que trabalham a distância em tempo real, tem-se tornado possível o delineamento de uma estratégia de visão global.
A Blitzkrieg de 1939 ou a Guerra dos Seis Dias de 1967, na sua aceleração constante, circunscreviam-se contudo a uma geometria conhecida. Depois surgiu o ciberespaço. A ARPANet, a primeira rede de computadores desenhada para resistir às contingências da dissuasão nuclear, começou a funcionar no final da década de sessenta. Do ponto de vista estratégico, era essencial lançar informação para uma rede virtual, evitando-se que fosse perdida no tecido do real em caso de destruição pela bomba. Sedimentada ao longo das últimas décadas, a Internet, que começou como tecnologia militar, tem sido um poderoso veículo e depósito de conteúdos, que para além de fundir o espaço e o tempo, o próximo e o distante, emancipou o receptor, tornado doravante um potencial emissor.
Sublinhando a advertência viriliana de que para cada avanço tecnológico existirá o seu correlativo, ou seja, a expectativa de se registar um acidente, eis que para o comando de operações militares norte-americano surge uma verdadeira Bomba Informática: desde Novembro de 2010 que a organização Wikileaks divulgou quantidades massivas de informação classificada, uma operação que ficou conhecida como Cablegate[i] – United States Diplomatic Cables Leak – à qual voltaremos mais à frente.
Um «milagre ao contrário»[ii], assim é o acidente para Virilio. A partir da invenção dos carris e do comboio é inventado também o descarrilamento; a obesidade do Airbus 380 torna possível um super plane crash; descobrir a eletricidade é criar as circunstâncias que levam à electrocussão. Cada tecnologia veicula a sua negatividade e o desenvolvimento do engenho está intrinsecamente relacionado ao progresso do acidente na sua performance. Será impossível escapar ao sentido endémico de uma vitalidade partilhada por todos os objetos técnicos, isto porque a técnica dá forma e informa o horizonte da experiência e o acidente atesta que as coisas têm o seu poder e as suas tendências. É na aliança com a tecnologia que o ser humano se individua, descobrindo concomitantemente as suas vulnerabilidades. No entanto, um certo positivismo da ciência assevera uma posição de dominância do Homem quer face à tecnologia, quer em relação à natureza. A contrariar este pressuposto, propomos uma abordagem a Gilbert Simondon e a Du mode d’existence des Objets Techniques, cujas consequências não terão sido absolutamente absorvidas pela contemporaneidade.
Se existem perturbações entre os objetos técnicos e a cultura contemporânea, tal alienação[iii] provém da indisponibilidade humana em compreender a natureza e a essência dos dispositivos tecnológicos. Assim, Simondon repara na ausência da máquina no domínio do inteligível – quando em rigor estas estruturas dinâmicas vão integrando a cultura. Para isso foi preciso definir o que é um objecto técnico, reconhecendo os seus disseminados modos de existência; uma vez definido a partir da sua ontogénese, torna-se então possível estudar a relação entre objetos técnicos e outras realidades (Simondon, 1980: 16).
De acordo com o que Simondon designou de aplicação analítica, cada ente técnico é portador de tecnicidade. Não poderá, no entanto, ser um objecto de conhecimento adequado sem que o significado temporal da sua evolução seja percebido enquanto essencial (Simondon, 1980: 18) – sendo que este conhecimento passa pela imersão numa cultura técnica, distinta do conhecimento técnico, este último limitado à aplicabilidade de sistemas isolados de funcionamento. A génese de um ente técnico é constituinte do seu ser e o passado evolutivo permanece-lhe sempre ancorado enquanto estrutura essencial – patente na sua forma técnica, tal como acontece em estruturas filogenéticas. O início de uma linhagem de objetos é marcado por um ato sintético de invenção (Simondon, 1980: 38), o que será fundamental à sua essência. Nesta adaptação-concretização, as condições de existência são anteriores e, no momento inventivo, não se opera a criação de um novo dispositivo mas antes um salto individuativo para um outro registo.
Simondon sublinha que o objecto técnico engendra uma família, e que tal transformação comporta a ideia de uma evolução técnica natural (Simondon, 1980: 37). Na sua etapa primitiva o objecto técnico existe sob uma aparência não-saturada, ou seja, no ofício manual o objecto técnico acontece na sua forma abstracta (Simondon, 1980: 20). Quaisquer aperfeiçoamentos a que o objecto venha a ser submetido são atuantes de forma progressiva até à saturação do sistema – correspondendo a indústria à sua forma concreta (22).
«The technical object exists, then, as a specific type that is arrived at the end of a convergent series. This series goes from the abstract mode to the concrete mode: it tends towards a state at which the technical being becomes a system that is entirely coherent with itself and entirely unified.» (Simondon, 1980: 21)
A técnica é, portanto, um processo de concretização: o seu ser técnico desenvolve-se por convergência e adaptação a si mesmo – unificado por um princípio de ressonância interna (Simondon, 1980: 19). Num imenso movimento contínuo de vaivém, as relações que existem ao nível da tecnicidade, entre um objecto técnico e um outro ente qualquer, são tanto horizontais como verticais (Simondon, 1980: 18). e operam-se em termos transdutivos. O combustível que irriga todo este sistema poderá ser então o machinic phylum, conceito deleuziano que designa o processo auto-organizativo das máquinas, e do próprio universo; o grande “magma” de onde tudo provém e que vai catalisando movimento e matéria numa linhagem tecnológica:
«Poder-se-ia falar de um phylum maquínico, ou de uma linhagem tecnológica, cada vez que nos encontrarmos diante de um conjunto de singularidades, prolongáveis por operações, que convergem e as fazem convergir numa ou em várias características de expressão atribuíveis». (Deleuze, Guattari, 2007: 518)
As ressonâncias maquínicas definem os sistemas operativos e inflamam a «automontagem» das máquinas. No limite, existirá uma única linhagem filogenética, um único phylum maquínico, idealmente contínuo. Uma corrente de matéria-movimento, operativa e expressiva, geradora de singularidades[iv], que funde a distinção entre a vida orgânica e não orgânica.
A tecnologia, examinada enquanto rede de relações, permite o interface homem/natureza e, desfazendo o dualismo que esta divisão implica, faz intercomunicar os seres humanos e as entidades naturais em subtis relações de feedback. Uma vez entendida a ontogénese do objecto técnico, que por transdução progride criando novas relações entre pessoas e coisas, entre pessoas e pessoas, e entre coisas e coisas, poder-se-á falar então numa simbiose entre humanos e técnica?
É chegado o momento de convocar William Burroughs e Feedback de Watergate para o Jardim de Éden: «No princípio era a palavra e a palavra era Deus e desde então tem permanecido um mistério» (Burroughs, 2010: 19). E Burroughs acrescenta, questionando: «no princípio de quê exatamente esteve essa palavra inicial?». A questão afigura-se essencial, pois com efeito a nossa proposta passa por compreender que a palavra é o primeiro ato técnico. Burroughs apresenta a seguinte hipótese: a palavra precipitou-se sobre os indivíduos como uma virose que desencadeou a fala, e se tal não tem sido reconhecido, foi porque atingiu um estado de simbiose estável com o seu hospedeiro (Burroughs, 2010: 21). Na explicação desta sua ideia, interpõe o artigo de G. Belyavin intitulado Virus Adaptability and Host Resistance, para poder especular quanto à finalidade biológica dessa espécie. De forma a sobreviverem num estado ativo, os vírus, que são parasitas celulares compulsivos totalmente dependentes dos sistemas que habitam, encerram concomitantemente o paradoxo de destruir as células onde estão alojados e das quais dependem. Burroughs prossegue, recorrendo ao mesmo artigo no desdobramento da ideia: do ponto de vista do vírus, a situação ideal seria poder desenvolver-se plenamente, contaminando o hospedeiro, mas sem jamais perturbar o seu metabolismo – uma tendência crescente, observa Belyavin. Necessariamente, nesse estado de equilíbrio total e benigno para com a célula hospedeira, o vírus dificilmente seria reconhecido; ou reconhecido enquanto tal.
A palavra é um desses vírus, não ainda detectado porque alcançou a desejada estabilidade com o hospedeiro. Os símios, e os demais primatas, não falam porque a estrutura das suas gargantas assim não o permite. É então que na nossa origem ancestral o vírus de mutação biológica B-23 entra em ação, sugere Burroughs, apresentando a teoria do doutor Kurt Unruh von Steinplatz: como sintoma da presença do vírus, os primeiros hominídeos terão sofrido alterações biológicas especialmente destinadas a alojá-lo na garganta, e depois transmitidas geneticamente (Burroughs, 2010: 21-24). Nesta hipertelia, os antropoides, sobretudo os machos, iam no entanto perecendo. Ainda assim, no devir individuado da sua linhagem filogenética, algumas crias acabariam por resistir, até ao ponto em que a relação simbiótica estaria constituída e para o hospedeiro o parasita seria entendido enquanto «uma parte útil de si próprio».
Toda a teoria aponta então para uma virose mortífera que tornou possível a palavra – o primeiro ato técnico – e ao reconstruir a garganta dos macacos, que não estava «programada» para a fala, o vírus criou os humanos (Kittler, 1999: 109). Aliás, sobre a relação entre técnica e linguagem, subjaz ao trabalho de Leroi-Gourhan um vitalismo tecnológico que se plasma sobre a evolução biológica:
«Technics involves both gestures and tools, sequentially organized by means of a “syntax” that imparts both fixity and flexibility to the series of operations involved. This operating sequence is suggested by memory and comes into being as a product of the brain and physical environment. If we pursue the parallel with language, we find a similar process taking place. On the basis of what we know of techniques from pebble culture to Acheulean industry, we could adopt the hypothesis of a language whose complexity and wealth of concept corresponded approximately to the level of those techniques.»[v]
Uma vez entendido que a palavra foi o primeiro ato técnico, eis que por extensão poderemos pensar a técnica enquanto uma virose – de mutação tecnológica – o que não tem sido reconhecido enquanto tal porque existe em estado de simbiose estável com o hospedeiro. Se o vírus de mutação tecnológica inventou os humanos deparamo-nos com a aporética questão que Bernard Stiegler levanta em La technique et le temps, 1: La faute de Epiméthée: «e se o “quem” fosse a técnica e o “o quê” o humano»[vi]? Dar resposta parece-nos inextricável, mas neutralizando essa dúvida, propomos a absorção mútua dos polos – foram-se individuando, o primeiro enquanto vírus e o segundo enquanto hospedeiro, numa relação de absoluta simbiose. A técnica enquanto produto humano afigura-se insustentável – e o acidente, a advertência de Virilio que aqui nos serve de referência, subjaz a essa inevitabilidade.
Dissipada a ambiguidade, a resolução apresentada anteriormente está claramente ancorada à problemática da individuação de Gilbert Simondon. Em L’individu et sa genèse physico-biologique, o filósofo francês debruça-se sobre o indivíduo pensando-o não como uma entidade estável, o que pressupõe a existência de essências e substâncias fixas, mas antes enquanto um processo em curso, ou seja, um sistema que tem de tornar-se. Simondon designa de individuação[vii] a operação em que o ser se reifica resolvendo tensões anteriores, preservando continuadamente singularidades sobre o seu devir. Simondon indica a insuficiência da dualidade forma/matéria do esquema hilemórfico, onde a substância, entendida enquanto passiva e inerte, é configurada – talhada, moldada – por uma forma que lhe é imposta. Não obstante, o filósofo também não partilha do monismo das ideias substancialistas, contrárias à bipolaridade hilemórfica, e em que a realidade está circunscrita a um princípio absoluto onde impera a unidade entre as forças da natureza. Em suma: a matéria não é sempre passiva, pois contém estruturas e potenciais que definem direções, e a forma nunca é absoluta, uma vez que trabalha em termos transdutivos. Há contudo uma ideia subjacente a ambas: supõem um princípio de individuação anterior ao próprio indivíduo. Por transdução a forma manifesta-se na matéria, ou seja, operam-se transformações que transmitem energia e assim informam a matéria, num processo pleno de reciprocidade em que uma coisa é afectada ou modulada por outra:
«La notion de forme doit être remplacée par celle d’information, qui suppose l’existence d’un système en état d’équilibre métastable pouvant s’individuer; l’information, à la différence de la forme, n’est jamais un terme unique, mais la signification que surgit d’une disparation. La notion ancienne de forme, telle que la livre le schéma hylémorphique, est trop indépendante de toute notion de système et de métastabilité.» (Simondon, 2007, 28)
De acordo com Simondon, deveremos entender o ser enquanto metaestável, isto é, pleno de energia em potência, susceptível a qualquer desarranjo e consequentemente gerador de transformações. A perturbação certa dissolve a substância que, precipitando-se sobre si mesma, conserva determinados traços do pré-individual, sempre disponível para futuras solicitações.
Esclarecido o processo de individuação, retomemos Burroughs. A ideia de virose generalizada e de erradicação total da espécie humana tem sido trabalhada na ficção científica: androides colonizadores, criaturas extraterrestres com programas de eliminação massiva, injeção de máquinas no subsolo terrestre algures num filme de Spielberg… A técnica deslumbra mas simultaneamente mantém refém o Homem. E aqui incidimos em Burroughs: «Será então o vírus [a técnica] simplesmente uma bomba de relógio deixada no nosso planeta e destinada a ser ativada por controle remoto? De facto, um programa de extermínio? Na sua trajetória de virulência plena até atingir o objectivo final de simbiose, sobreviverá algum humano?». Tendemos para uma paradoxal polarização, pois do mesmo modo que receamos as tecnologias, também as consumimos mais e mais. Simondon, como já referimos, reconhece que esta malaise provém da brecha sentida pelo sujeito aquando da concretização da máquina e do seu subsequente agenciamento (Simondon, 1980: 70), uma vez que tomou o lugar do homem na produção industrial. Com a industrialização do objecto, a individualidade humana torna-se cada vez mais deslocada do processo produtivo, o que não era observável na fase abstracta do objecto técnico. Quais as funções que restam então ao homem? De forma a voltar a ter sentido funcional, é absolutamente necessário que se familiarize com todos os aspectos da máquina, estando ativamente disponível para ser informado, e encontrar assim uma adequada posição em todo o “technical ensemble”. Daí o repto de Simondon: a necessidade de uma cultura técnica[viii].
Na individuação do vírus de mutação tecnológica, a corrente do tempo é contínua e a sua ordem é tradicionalmente irreversível. Nessa expansividade, as necessidades do sujeito são plasmadas pelo objecto técnico industrial que, por integrar estruturas da sua existência, adquire o poder de moldar a civilização (Simondon, 1980: 22). A realidade humana reside na máquina, assim como as ações do homem são fixadas e cristalizadas nas suas estruturas operativas (Simondon, 1980: 13). As máquinas reclamam agora as funções do sistema nervoso central, não somente aquelas que amplificavam os músculos humanos, como sublinha Friedrich Kittler em Grammophone Film Typewriter:
«Once the technological differentiation of optics, acoustics, and writing exploded Gutenberg’s writing monopoly around 1880, the fabrication of so-called Man became possible. His essence escapes into apparatuses. Machines take over functions of the central nervous system, and no longer, as in times past, merely those of muscles. And with this differentiation – and not with steam engines and railroads – a clear division occurs between matter and information, the real and the symbolic. When it comes to inventing phonography and cinema, the age-old dreams of humankind are no longer sufficient. The physiology of eyes, ears, and brains have to become objects of scientific research. For mechanized writing to be optimized, one can no longer dream of writing as the expression of individuals or the trace of bodies. The very forms, differences, and frequencies of its letters have to be reduced to formulas. So-called Man is split up into physiology and information technology.» (Kittler, 1999: 16)
Assim, é possível traçar uma corrente de individuação desde a torre de vigia medieval ao avião de reconhecimento da Segunda Guerra Mundial[ix], por exemplo. Uma vez que radicam num único acto sintético de invenção[x], alcançamos finalmente a sua ontogénese, portanto, na sua aplicação analítica são essencialmente máquinas de visão que permitem a percepção indireta. A essência humana plasmada sobre toda a aparelhagem[xi] provocou um impacto profundo na ideia de diferenciação, sulcando delimitações entre matéria e informação.
Sobre os instrumentos, Vilém Flusser diz-nos que têm por desígnio «arrancar objetos da natureza para aproximá-los ao homem», enfatizando que antes da Revolução Industrial estariam numa relação que apontava para o prolongamento do corpo, isto é, enquanto ferramentas amplificavam as ações dos músculos e dos órgãos do homem. Contudo, a generalização da industria alterou todas as ligações ulteriores: «Antes, os instrumentos funcionavam em função do homem; depois, grande parte da humanidade passou a funcionar em função das máquinas» (Flusser, 1998: 41). Também Simondon especifica que com o surgimento da industria emergem indivíduos técnicos na forma de máquinas, que reclamam para si a função que até então o homem ocupava. Nesta adequação, o humano tornou-se consequentemente assistente ou técnico de montagem das máquinas (Simondon, 1980: 67-70). Mas quando a relação entre homem e máquina for plenamente alcançada, isto é, quando o homem usar da máquina para agir ativamente sobre o mundo natural[xii], aí a máquina entrará na sua concretização plena, rumo à naturalização. O homem será o portador da máquina numa relação em que esta surge como ativa mediadora da relação homem-mundo. Será nesta estabilização que o humano irradiará tecnicidade, e dissolvido num complexo indivíduo técnico formado por homem e máquina, voltará a ser o indivíduo técnico[xiii].
Voltemos a Burroughs e ao Feedback de Watergate [e de Cablegate] para o Jardim do Éden. O vírus, o individuado vírus de mutação tecnológica, tal como a concretização plena do objecto técnico em Simondon, naturalizou-se nas gargantas dando a palavra ao homem. Porém, é extremamente susceptível e existe em metaestabilidade. Qualquer perturbação no seu sistema, resultará na rescisão do antiquíssimo pacto de simbiose com os humanos. Então com os gravadores de Watergate e os servidores em Cablegate, o vírus agita-se nas gargantas... O vírus que outrora nos deu a palavra e se tem ocultado por detrás do seu efeito (Burroughs, 2010: 25-27), que é tanto palavra como imagem, quando biologicamente ativado é transmissível. Terá sido assim que aconteceu no longínquo Jardim do Éden da alegoria de Burroughs: «Adão sente vergonha quando o seu comportamento lamentável lhe é retransmitido pelo gravador 3, que é Deus».
Burroughs sugere que se tivermos por intenção atingir um político rival, basta pegar no gravador 1, onde registaremos os seus discursos se possível intercalando com erros de pronúncia – «do pior que o número 1 consiga reunir»; em seguida efetua-se uma gravação erótica obtida com microfones encobertos para o gravador 2; no gravador 3 registam-se as vozes hostis da censura... e «com esta fórmula simples, qualquer agente da CIA, filho da mãe, pode transformar-se em Deus, isto é, no gravador 3» (Burroughs, 2010: 28-29). É garantido que a fórmula resulta, uma vez que quaisquer gravações retransmitidas em local próprio[xiv] produzem o efeito pretendido – não obstante, a escolha deste sítio de projeção é essencial para o êxito do exercício. Poderão ser vários os participantes mas o gravador 3 terá de se assumir como gravador isolado numa posição de domínio.
As possibilidades apresentadas são verificáveis em algumas manobras mediáticas. No caso Rubygate, Silvio Berlusconi manteve-se imune distribuindo retransmissões com o poder antibiótico da Mediaset – que detém o monopólio dos média italianos – e da lei Alfano – que lhe permitiu definir as “regras do jogo”. Soberano é aquele que determina o que será exceção à lei. Com efeito:
“A operação elementar de registar imagens, mais imagens e playback, pode ser levada a cabo por quem quer que tenha um gravador e uma máquina de filmar. O número de jogadores não tem limite. Milhões de pessoas ao procederem a esta operação elementar poderiam anular o sistema de controlo que estão a tentar impor os que estão por trás de Watergate e Nixon; como todos os sistemas de controle, depende da manutenção de uma posição de monopólio. Se qualquer um puder ser o gravador 3, então o gravador 3 perde o poder. Deus tem de ser O Deus.”(Burroughs, 2010: 38)
Em Grammophon Film Typewriter, Friedrich Kittler identifica que o que teve origem enquanto media war, tenderá a fechar o ciclo pelo fenómeno de retroação: «What began as a media war has to end as a media war so as to close the feedback loop linking Nixon’s Watergate tapes to the Garden of Eden» (Kittler, 1999: 251). É uma questão que nos remete para a ontogénese dos próprios equipamentos, ou seja, é por intermédio dos agenciamentos[xv] que um aparelho como o magnetofone, posteriormente produzido de forma generalizada, retornou enquanto media war no caso Watergate. E o mesmo aconteceu com a internet. Na era da visão global, as máquinas de percepção registam tudo o que veem, emergindo com Cablegate a (re)transmissão do vídeo do ataque aéreo perpetrado pelas forças norte-americanas em Bagdad a 12 de Julho de 2007 e libertado pela Wikileaks a 5 de Abril de 2010[xvi]. Ver e antever tendem a fundir-se perigosamente até ao ponto em que o atual e o potencial se tornam indiscerníveis. Assim, «Collateral murder» tornou-se um vídeo-míssil. Desvelado que estava o «gravador 2», cedo lhe sobreveio uma atualizada retransmissão. Em Agosto do mesmo ano, Julian Assange cai na teia das gravações, acumulando com a sua posição de gravador 2, ou de meio, a de gravador 1, ou seja, a de hospedeiro (ou ainda de Adão).
Bibliografia
Burroughs, William. A Revolução Electrónica. Lisboa: Vega, 2010.
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil Planaltos: Capitalismo e Esquizofrenia 2, Lisboa: Assírio & Alvim, 2007.
Flusser, Vilém. Ensaio sobre a Fotografia. Lisboa: Relógio d’água, 1998.
Kittler, Friedrich. Gramophone, Film, Typewriter. Stanford University Press, 1999.
Simondon, Gilbert. L’individuation psychique et collective. Paris: Editions Aubier, 2007.
–––, On the Mode of Existence of Technical Objects. Ontario: University of Wetern Ontario, 1980.
Stiegler, Bernard. Technics and Time 1: The Fault of Epimetheus. Stanford University Press, 1998.
Virilio, Paul. War and Cinema – The Logistics of Perception. London-New York: Verso, 1989.
–––, The Vision Machine. Indiana University Press, 1994.
–––, A Landscape of Events. Cambridge: MIT Press, 2000
–––, Art as far as the eye can see. Oxford – New York: Berg Publishers, 2007.
[i] A nossa vontade em esticar Cablegate até “Feedback de Watergate para o Jardim de Éden” de William Burroughs em A Revolução Electrónica, determina a conservação do feedback de Burroughs no título deste ensaio.
[ii] Esta problemática é recorrentemente desvelada nos ensaios de Paul Virilio, dos quais destacamos Art as far as the eye can see e A Landscape of Events.
[iii] «The most powerful cause of alienation in the world of today is based on misunderstanding of the machine. The alienation in question is not caused by the machine but by a failure to come to an understanding of the nature and essence of the machine, by the absence of the machine from the world of meanings, and by its omission from the table of values and concepts that are an integral part of culture». (Simondon, 1980: 11).
[iv] «Ao fim e ao cabo, só há uma única e mesma linha filogenética, um único e mesmo phylum maquínico, idealmente contínuo: o fluxo de matéria-movimento, fluxo de matéria em variação contínua, portador de singularidades e de características de expressão.» (Deleuze, Guattari, 2007: 518).
[v] André Leroi-Gourhan, citado por Bernard Stiegler. (Stiegler, 1998: 167-168).
[vi] Veja-se a passagem completa: « “Who” or “what” does the inventing? “Who” or “what” is invented? […] The relation binding the “who” and the “what” is invention. Apparently, the “who” and the “what” are named respectively: the human, and the technical. Nevertheless, the ambiguity of the genitive imposes at least the following question: what if the “who” were the technical? And the “what” the human?». (Stiegler, 1998: 134).
[vii] Recorde-se a definição: «L’individuation correspond à l’apparition de phases dans l’être qui sont les phases de l’être; elle n’est pas une conséquence déposée au bord du devenir et isolée mais cette opération même en train de s’accomplir; on ne peut la comprendre qu’à partir de cette sursaturation initiale de l’être sans devenir et homogène qui ensuite se structure et devient, faisant apparaître individu et milieu, selon le devenir qui est une résolution des tensions premières et une conservation de ces tensions sous forme de structure; on pourrait dire en un certain sens que le seul principe sur lequel on puisse se guider est celui de la conservation d’être à travers le devenir; cette conservation existe à travers des échanges entre structure et opération, procédant par sauts quantiques à travers des équilibres successifs.» (Simondon, 2007: 13)
[viii] «Therefore, the basis for the malaise in the man-machine relationship is the fact that until our own Man had so well learned to be a technical being that he goes to the extent of believing that once the technical being is concrete it wrongly begins to play the role of man. Ideas about slavery and freedom are too closely bound to the old idea of man as technical object to be able to relate to the real problem of the relationship between man and machine. The technical object must be known in itself if the relationship between man and machine is to be steady and valid. Hence the need for a technical culture». (Simondon, 2007: 70)
[ix] «Thus, alongside the “war machine”, there has always existed an ocular (and later optical and electro-optical) “watching machine’ capable of providing soldiers, and particulary commanders, with a visual perspective on the military action under way. From the original watch-tower through the ancored ballon to the reconaissance aircraft and remote-sensing satellites, one and the same function has been indefinetely repeated, the eye’s function being the function of the weapon». (Virilio, 1989: 4).
[x] Diz-nos Simondon que o início de uma linhagem de objectos é marcado por um acto sintético de invenção, o que será fundamental à sua essência. (Simondon, 1980: 39).
[xi] Mas as funções dos aparelhos também se vertem sobre fenómenos naturais: «Não há dúvida que o termo aparelho é utilizado às vezes, para denominar fenómenos da natureza; por exemplo, “aparelho digestivo”, por se tratar de órgãos complexos que estão à espreita de alimentos para enfim digeri-los. Sugiro, porém, que se trata de um uso metafórico, transporte de um termo cultural para o domínio da natureza. Se não fosse a existência de aparelhos na nossa cultura, não poderíamos falar em “aparelho digestivo”.» (Flússer, 1998: 40)
[xii] “The liaison between man and machine is realized when man uses the machine to act upon the natural world. So, the machine is a vehicle for action and information in a three-way relationship involving man, the machine and the world, with the machine in between man and the world” (Simondon, 1980: 68).
[xiii] “Man has played the role of technical individual to the extent that he looks on the machine-as-technical individual as if it were a man and occupying the position of a man, whereas in actual fact it was man who provisionally took the place of the machine before real technical individuals could be made.” (Simondon, 1980: 70).
[xiv] «Fiz experiências com gravações de rua e playback durante vários anos e é-se confrontado com o facto surpreendente de não serem precisas gravações eróticas ou mesmo tratamento de fitas gravadas para produzir efeitos com playback. Quaisquer gravações retransmitidas no local próprio da maneira que vou descrever podem produzir efeito.» (Burroughs, 2010: 32)
[xv] «Chamar-se-á agenciamento qualquer conjunto de singularidades e características prelevadas sobre o fluxo – seleccionadas, organizadas, estratificadas – de maneira a convergir (consistência) artificial e naturalmente: um agenciamento, neste sentido, é uma verdaeira invenção». (Deleuze, Guattari, 2007: 518).
[xvi] «5th April 2010 10:44 EST WikiLeaks has released a classified US military video depicting the indiscriminate slaying of over a dozen people in the Iraqi suburb of New Baghdad – including two Reuters news staff». Fonte: wikileaks http://www.collateralmurder.com/