A Geoestética (de Baalbek a Palmira) e a Terra como Objeto Político
Patrício, C. (2021). “A Geoestética (de Baalbek a Palmira) e a Terra como Objeto Político”. In Crítica das Mediações Totais - Perspectivas expandidas dos media, Manuel Bogalheiro (Org.). Lisboa: Documenta. ISBN: 978-989-9006-83-6
***
Por isso, vem! Para que contemplemos o espaço aberto,
Para que procuremos o que é nosso, por muito longe que se encontre.
Uma coisa é certa: quer ao meio-dia, quer
até à meia-noite, a todos é comum
uma medida, aplicada diferentemente a cada um,
e vai e vem assim cada um até onde pode.
Por isso à loucura exultante é grato troçar da troça,
quando de súbito se apodera do vate na noite sagrada.
Hölderlin, “Pão e Vinho”
1. Raush, Pedra e Antropofósseis
Sempre vivemos entre-mundos – entre o peso da Terra e a leveza do espaço sideral; entre a agrura do trabalho, da doença e das guerras, e a totalidade das forças do Universo, eternas e indestrutíveis. Talvez por isso tivessem os antigos projetado para os céus as suas pirâmides, construído nos planaltos cidades impossíveis, ou desenhado sinais que só podiam ser vistos do alto dos céus. Das construções na Terra ao éter eterno, como se se abolissem as distâncias, comungava-se extaticamente[1] com a imensidão do cosmos.
Pelo Rausch, o transe dos antigos, projetava-se para fora de si um corpo coletivo – em devir criativo – que se havia libertado do absolutismo da natureza[2] e queria construir. Da seminal pulsão tectónica[3] que montou o mausoléu neolítico de Cairn Barnenez, às “eróticas” [4] catedrais de Ajanta – empreitada dos imperadores Gupta que do século IV ao VI cortou à montanha um conjunto de grutas – eis os homens “[…] a pretender chegar ao lado ativo da Natureza e apropriar-se de partes da competência criativa que anteriormente era monopólio da natura naturans – o útero absoluto, ou seja, a Terra”[5].
Os alinhamentos megalíticos de Stonehenge, os palácios de Ollantaytambo, as linhas de Nazca, instanciam a remota divisão originária[6] e exultam o cosmos. Tendo isso em comum, estas construções ligam-se umas às outras constituindo simultaneamente uma malha que pode ser descrita como a comunidade de monumentos arcaicos que participaram de uma extásica experiência coletiva. O que impende sobre este conjunto de Antropofósseis? De que matéria são feitos? As pedras devem também ser movidas pelos seus desejos.
continuar a ler em Crítica das Mediações Totais - Perspectivas expandidas dos media, Manuel Bogalheiro (Org.). Lisboa: Documenta
[1] O êxtase, exultação perdida para o homem moderno, é para Walter Benjamin “a única experiência na qual nos asseguramos do que há de mais próximo e mais longínquo, e nunca um sem o outro”. Di-lo em “Planetário”: é o teatro da projeção que se constitui como a figura alegórica para uma constelação universal, por congregar sob uma cúpula de estrelas a máquina que projeta, a recepção de um coletivo e a recriação das forças da natureza. (Walter Benjamin [1929], “Planetário,” in Rua de sentido único (Lisboa: Relógio D’Água, 1992), 107-108.
[2] O primeiro gesto humano passou pela libertação desse fundo ideal, logo a disputa com a natureza é tão antiga quanto a própria humanidade. É essa a primeira premissa de Sloterdijk da conferência de 2007 em Serralves. Cf. Peter Sloterdijk, “A Natureza Por Fazer. O Tema Decisivo da Época Moderna” in Política: Crítica do Contemporâneo (Fundação Serralves, 2008).
[3] Em Gilbert Simondon a tecnicidade e o pensamento religioso resultam do desfasamento entre o modo único de ser no mundo, o modo mágico, que tudo regia de forma unívoca. No eixo intermédio entre técnica e religião apareceu a estética, que não sendo uma fase traz à lembrança o rompimento da unidade do modo mágico, e simultaneamente procura pela união futura (Cf. Gilbert Simondon [1958], Du mode d’existence des objets techniques, (Paris: Aubier, 2012)). E aqui situamos a origem da arquitectura: a inicial pulsão tectónica, tanto técnica como religiosa, que, apelando ao cósmico, chama também a si uma reticulação futura.
[4] Assim descritas por Henri Lefebvre em Vers une architecture de la jouissance, manuscrito de 1973 editado postumamente por Łukasz Stanek. Cf. Henry Lefebvre, Toward an architecture of enjoyment (London, Minneapolis: University of Minnesota Press, 2014). Mas quer pela contorção dos corpos esculpidos na pedra e pintados nos frescos, quer pela ligação que se estabelece com o cosmos (Rausch), em Ajanta apela-se ao Eros.
[5] Sloterdijk, “A Natureza Por Fazer”, 118.
[6] José Bragança de Miranda aponta para uma divisão originária produzida pelas imagens que se soltavam das superfícies espelhadas da natureza. Da sua leveza, contrastante com a densidade da matéria, foram as imagens que motivaram a origem do humano. Cf. José Bragança de Miranda, Corpo e Imagem (Lisboa: Nova Vega, 2008).
Por isso, vem! Para que contemplemos o espaço aberto,
Para que procuremos o que é nosso, por muito longe que se encontre.
Uma coisa é certa: quer ao meio-dia, quer
até à meia-noite, a todos é comum
uma medida, aplicada diferentemente a cada um,
e vai e vem assim cada um até onde pode.
Por isso à loucura exultante é grato troçar da troça,
quando de súbito se apodera do vate na noite sagrada.
Hölderlin, “Pão e Vinho”
1. Raush, Pedra e Antropofósseis
Sempre vivemos entre-mundos – entre o peso da Terra e a leveza do espaço sideral; entre a agrura do trabalho, da doença e das guerras, e a totalidade das forças do Universo, eternas e indestrutíveis. Talvez por isso tivessem os antigos projetado para os céus as suas pirâmides, construído nos planaltos cidades impossíveis, ou desenhado sinais que só podiam ser vistos do alto dos céus. Das construções na Terra ao éter eterno, como se se abolissem as distâncias, comungava-se extaticamente[1] com a imensidão do cosmos.
Pelo Rausch, o transe dos antigos, projetava-se para fora de si um corpo coletivo – em devir criativo – que se havia libertado do absolutismo da natureza[2] e queria construir. Da seminal pulsão tectónica[3] que montou o mausoléu neolítico de Cairn Barnenez, às “eróticas” [4] catedrais de Ajanta – empreitada dos imperadores Gupta que do século IV ao VI cortou à montanha um conjunto de grutas – eis os homens “[…] a pretender chegar ao lado ativo da Natureza e apropriar-se de partes da competência criativa que anteriormente era monopólio da natura naturans – o útero absoluto, ou seja, a Terra”[5].
Os alinhamentos megalíticos de Stonehenge, os palácios de Ollantaytambo, as linhas de Nazca, instanciam a remota divisão originária[6] e exultam o cosmos. Tendo isso em comum, estas construções ligam-se umas às outras constituindo simultaneamente uma malha que pode ser descrita como a comunidade de monumentos arcaicos que participaram de uma extásica experiência coletiva. O que impende sobre este conjunto de Antropofósseis? De que matéria são feitos? As pedras devem também ser movidas pelos seus desejos.
continuar a ler em Crítica das Mediações Totais - Perspectivas expandidas dos media, Manuel Bogalheiro (Org.). Lisboa: Documenta
[1] O êxtase, exultação perdida para o homem moderno, é para Walter Benjamin “a única experiência na qual nos asseguramos do que há de mais próximo e mais longínquo, e nunca um sem o outro”. Di-lo em “Planetário”: é o teatro da projeção que se constitui como a figura alegórica para uma constelação universal, por congregar sob uma cúpula de estrelas a máquina que projeta, a recepção de um coletivo e a recriação das forças da natureza. (Walter Benjamin [1929], “Planetário,” in Rua de sentido único (Lisboa: Relógio D’Água, 1992), 107-108.
[2] O primeiro gesto humano passou pela libertação desse fundo ideal, logo a disputa com a natureza é tão antiga quanto a própria humanidade. É essa a primeira premissa de Sloterdijk da conferência de 2007 em Serralves. Cf. Peter Sloterdijk, “A Natureza Por Fazer. O Tema Decisivo da Época Moderna” in Política: Crítica do Contemporâneo (Fundação Serralves, 2008).
[3] Em Gilbert Simondon a tecnicidade e o pensamento religioso resultam do desfasamento entre o modo único de ser no mundo, o modo mágico, que tudo regia de forma unívoca. No eixo intermédio entre técnica e religião apareceu a estética, que não sendo uma fase traz à lembrança o rompimento da unidade do modo mágico, e simultaneamente procura pela união futura (Cf. Gilbert Simondon [1958], Du mode d’existence des objets techniques, (Paris: Aubier, 2012)). E aqui situamos a origem da arquitectura: a inicial pulsão tectónica, tanto técnica como religiosa, que, apelando ao cósmico, chama também a si uma reticulação futura.
[4] Assim descritas por Henri Lefebvre em Vers une architecture de la jouissance, manuscrito de 1973 editado postumamente por Łukasz Stanek. Cf. Henry Lefebvre, Toward an architecture of enjoyment (London, Minneapolis: University of Minnesota Press, 2014). Mas quer pela contorção dos corpos esculpidos na pedra e pintados nos frescos, quer pela ligação que se estabelece com o cosmos (Rausch), em Ajanta apela-se ao Eros.
[5] Sloterdijk, “A Natureza Por Fazer”, 118.
[6] José Bragança de Miranda aponta para uma divisão originária produzida pelas imagens que se soltavam das superfícies espelhadas da natureza. Da sua leveza, contrastante com a densidade da matéria, foram as imagens que motivaram a origem do humano. Cf. José Bragança de Miranda, Corpo e Imagem (Lisboa: Nova Vega, 2008).